Sobre receitas médicas e automedicação

Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes, somos uns boçais
(Podres Poderes, Caetano Veloso)

Era uma das últimas consultas da manhã e eu estava atrasada. O paciente, um homem de meia idade, entrou no consultório visivelmente contrariado. Passando os olhos no prontuário, percebi que era sua primeira consulta no SUS do município. Não houve clima para amenidades, pois ele foi direto ao assunto, dizendo que precisava da receita de omeprazol. Quando perguntei o motivo de tomar o medicamento, o sujeito respondeu, ríspido: “Tomo porque tenho direito!”

A irritação já vinha consumindo o paciente há dias. A peregrinação começou no balcão da farmácia da Unidade de Saúde. A farmacêutica orientou que omeprazol estava disponível, mas só poderia ser dispensado mediante prescrição por um médico do SUS.  Como o paciente não tinha cadastro, foi necessária uma visita domiciliar pelo agente comunitário para confirmação do endereço. Alguns dias depois, com a documentação regularizada, o paciente retorna ao serviço, sendo recepcionado por uma técnica de enfermagem, que o encaminhou para uma consulta de acolhimento com a enfermeira. Como as consultas médicas para aquele dia haviam esgotado, restou a opção de agendar uma consulta para o dia seguinte.

Do ponto de vista do médico, tomar omeprazol é antes uma questão de indicação do que de direito.  Um médico não é obrigado a prescrever um tratamento com o qual não concorda.  Mas neste caso específico, eu acredito que o paciente se referia a outro direito – o direito à automedicação.  Provavelmente ele não saiba disso, mas a legislação de medicamentos no Brasil estabelece que o omeprazol pertence ao grupo dos chamados Medicamentos de Prescrição ou MPs, sendo obrigatório constar na embalagem uma tarja Vermelho Pantone 485C, com a inclusão da frase em caixa alta – ‘VENDA SOB PRESCRIÇAO MÉDICA’.(1)

O que o paciente está cansado de saber, no entanto, é que numa farmácia comercial a receita de omeprazol não é exigida para que a compra seja realizada.  A tarja vermelha é mais um exemplo daquelas leis que não pegam. No caso do omeprazol, o fato é que este medicamento já deveria ter sido promovido à categoria dos Medicamentos Isentos de Prescrição, ou MIPs, que ficam ao alcance das mãos nas prateleiras da farmácia, sem necessidade de receita. É assim em outros países, e a regulamentação neste sentido está a caminho.(2) O problema é quando pessoas como meu pai conseguem comprar o anticoagulante apixabana sem receita, o que é absolutamente inaceitável.

A automedicação é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como parte do autocuidado no caso de sintomas ou adoecimentos identificados pelo paciente e que são passíveis de resolução pelos MIPs.(3) Afinal de contas, é justamente por serem seguros e efetivos quando usados de acordo com as orientações, que alguns medicamentos são categorizados desta forma.  A automedicação responsável pode trazer o alívio de sintomas no caso de problemas ocasionais ou nas fases iniciais de quadros que acabam necessitando de atendimento médico. Quem nunca teve uma azia ou uma dor de cabeça que foi resolvida na caixinha de remédios da avó precavida? Para quem não tem o que comer, no entanto, automedicação vira artigo de luxo.

De qualquer maneira, o omeprazol é utilizado extensivamente como automedicação pela população brasileira.  Um estudo de 2016 apontava a frequência de automedicação em 16,1% no Brasil, sendo que entre os medicamentos utilizados para este fim, 65,5% eram MIPs, e o omeprazol estava entre as 12 drogas mais utilizados pela população. Não foi identificada diferença significativa no uso de automedicação de acordo com a classe social e isto foi atribuído ao fato da população menos favorecida ter acesso a estes medicamentos via consulta médica pelo SUS, o que foi considerado uma vantagem pelos autores.(4)

Na verdade o acesso à automedicação é um determinante social de saúde e não existe regulamentação que garanta esta modalidade de tratamento pelo SUS.  Mas os médicos de postinho costumam ser criaturas generosas que se esforçam para não deixar ninguém na mão. O problema é que é insustentável que um Sistema de Saúde se dê ao luxo de dedicar um recurso tão escasso como uma consulta médica no SUS, para resolver uma questão que por definição não é do médico.  Não há dúvida de que se trata de um caso crônico de medicalização, termo criado nos anos 1970 por autores estrangeiros. Em terras tupiniquins já se tratava do assunto com grande conhecimento de causa no ano de 1953, quando Luiz Gonzaga e o médico Zé Dantas lançaram o Xote das Meninas:

Mas o doutô nem examina
Chamando o pai de lado
Lhe diz logo em surdina
Que o mal é da idade
E que pra tal menina
Não há um só remédio
Em toda a medicina

A canção ilustra a conduta irrepreensível do médico, que tratou logo de desmedicalizar a questão dizendo que o problema não era dele.  Mas e o meu paciente?  É problema de quem?  O problema é que o sistema de saúde brasileiro continua fortemente centrado no médico.  Além de criar uma demanda artificial para um trabalhador que já ultrapassou todos os limites da sobrecarga, ainda coloca o médico como uma barreira entre o usuário e seu direito à automedicação. E por fim leva o profissional a se responsabilizar por uma decisão que não tomou, como uma espécie de ‘laranja’ no tráfico de MIPs.

Em condições ideais, um médico de família deveria atender uma população de cerca de 2000 pessoas.(5,6) Esta recomendação se baseia na capacidade de ofertar consultas e certamente não leva em consideração esta aberração de consultas médicas para automedicação. E mesmo este número é questionado e considerado excessivo quando se consideram outros parâmetros de qualidade, além da capacidade de ofertar serviços.(7,8)

Mesmo assim o Ministério da Saúde do Brasil estabelece a proporção de 1 médico para cada 4 mil pessoas nos Postos de Saúde.(9) A desigualdade fica ainda mais evidente quando se sabe que no município de Curitiba, onde vive o paciente, existe 1 médico para cada 153 pessoas.(10) O excesso de pacientes para os médicos de postinho também é um determinante social de saúde, criando uma situação de desigualdade no acesso aos serviços de saúde. E mesmo com este número reduzido de profissionais, tais médicos são tratados como um recurso inesgotável, capazes de cuidar inclusive de automedicar a população de um país de dimensões continentais como o Brasil.

Neste Brasil dos contrastes, uma faixa da população que é servida por um número excessivo de médicos consegue comprar medicamentos de prescrição obrigatória mesmo sem apresentar a prescrição, enquanto a faixa da população que sofre pela baixa cobertura de serviços de saúde precisa de um médico até para se automedicar.  Somos mesmo uns boçais.


Referências

  1. Brasil. Ministério da Saúde.  Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Estabelece regras para a rotulagem de medicamentos. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2009/res0071_22_12_2009.html
  2. Brasil.Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Voto 207/2021 Analisa Pedido de excepcionalidade para o enquadramento do medicamento Omeprazol 20 mg como medicamento isento de prescrição.  Disponível  aqui
  3. OMS. Guidelines for the Regulatory Assessment of Medicinal Products for use in Self-Medication Geneva 2000. Disponível aqui
  4. Arrais PSD, Fernandes MEP, da Silva Dal Pizzol T, Ramos LR, Mengue SS, Luiza VL, et al. Prevalência da automedicação no Brasil e fatores associados. Rev Saude Publica. 2016;50(supl 2):13s. Disponível aqui
  5. Muldoon L, Dahrouge S, Russell G, Hogg W, Ward N. How many patients should a family physician have? Factors to consider in answering a deceptively simple question. Healthc Policy. 2012 May;7(4):26-34. PMID: 23634160; PMCID: PMC3359082. Disponível aqui
  6. Mayo-Smith MF, Robbins RA, Murray M, Weber R, Bagley PJ, Vitale EJ, Paige NM. Analysis of Variation in Organizational Definitions of Primary Care Panels: A Systematic Review. JAMA Netw Open. 2022 Apr 1;5(4):e227497. doi: 10.1001/jamanetworkopen.2022.7497. PMID: 35426924; PMCID: PMC9012968. Disponível aqui
  7. Rosser WW, Colwill JM, Kasperski J, Wilson L. Progress of Ontario’s Family Health Team model: a patient-centered medical home. Ann Fam Med. 2011 Mar-Apr;9(2):165-71. doi: 10.1370/afm.1228. PMID: 21403144; PMCID: PMC3056865. Disponível aqui
  8. Raffoul M, Moore M, Kamerow D, Bazemore A. A Primary Care Panel Size of 2500 Is neither Accurate nor Reasonable. J Am Board Fam Med. 2016 Jul-Aug;29(4):496-9. doi: 10.3122/jabfm.2016.04.150317. PMID: 27390381. Disponível aqui
  9. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria 2979, 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Disponível aqui
  10. Scheffer, M. et al., Demografia Médica no Brasil São Paulo, SP: FMUSP, CFM, 2020. 312 p. ISBN: 978-65-00-12370. Disponível aqui
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