De como o Brasil se tornou um estado de profundo mal-estar social

Ana Maria Sant’Ana

O câncer colorretal ou de intestino é o terceiro tipo de câncer mais comum no Brasil. Existem exames capazes de detectá-lo nas fases iniciais, antes que apareçam sintomas, quando as chances de cura são maiores. Há forte evidência científica de que todos os exames apresentados na tabela 1 diminuem a mortalidade por câncer de intestino quando realizados na população de 50 a 75 anos, com evidência mais fraca em outras faixas etárias. Enquanto nos EUA, o rastreamento é recomendado a partir dos 45 anos com qualquer exame entre os listados, no Reino Unido a recomendação é a  partir dos 60 anos, com o exame FIT (ver tabela 1), seguido de colonoscopia nos casos de FIT positivo. Os americanos não contam com um sistema universal de saúde que precisa custear os exames, e, portanto, a regulação é mais frouxa, enquanto que no sistema público britânico a oferta é bem mais restrita, com plano de expansão gradual, para garantir que todos sejam contemplados de forma mais igualitária.

No Brasil, no entanto optou-se por não realizar o rastreamento do câncer colorretal.  Como há baixa oferta de colonoscopia, esse tipo de exame fica reservado para  pacientes com suspeita de câncer, ou seja, pessoas com sintomas, quando se sabe que nesta fase as chances de cura são menores.

Se você tem plano de saúde considere-se privilegiado.  Os planos, ao contrário do SUS, são obrigados a custear o rastreamento deste tipo de câncer. A Agência Nacional de Saúde Suplementar, ANS, estabelece 21 dias para a realização de exames de alta complexidade como a colonoscopia.

Excluir os pobres do diagnóstico precoce, no entanto,  não provocou nenhuma repercussão.  Nem sequer um respingo de desgaste para nenhum dos poderes da república. Primeiro, porque ninguém tratou de avisar a população pobre.  Ou melhor, porque trataram de não avisar.  Nenhuma chamada no jornal, nenhuma postagem nas mídias sociais, nenhuma manifestação.  Um folder educativo orienta a prevenção através de alimentação saudável e atividade física e no caso de sintomas procurar o Posto de Saúde.  Como se a fome não fosse uma realidade no país.

A Lei 14.334, de 10 de maio de 2022, que regulamenta a prevenção do câncer colorretal no Sistema Único de Saúde, transplantou os intestinos a uma lei anterior (Lei 11.664, de 29 de abril de 2008), que tratava da prevenção de câncer em mulheres. De acordo com a nova lei, os exames de prevenção de câncer de colo uterino, mama e  intestino devem ser realizados em todas as mulheres que tenham atingido a puberdade, com ampla estratégia de rastreamento.  No texto consta uma abreviatura entre parênteses, (NR), que eu deduzo que signifique norma regulamentado.

A palavra puberdade foi incluída como forma de reduzir o limite de idade para a realização dos exames. E o termo ‘ampla estratégia de rastreamento’ significa que não há nenhuma restrição em relação ao tipo de exame a ser realizado nem à frequência de realização.  Ou seja, esta lei garante que o cidadão com plano de saúde faça exames de prevenção de câncer colorretal (e outros) como bem entender. Enquanto que para os pobres sobra a norma regulamentadora, disfarçada entre os parênteses. A mesma lei consegue prejudicar uns pelo excesso e outros pela ausência.

Uma explicação para a inclusão de faixas etárias inadequadas para exames de rastreamento  seria a influência de grupos de interesses que se beneficiam com a realização de exames desnecessários. Quando se fala em check up, estamos falando de exames para pessoas saudáveis, um nicho de mercado cada vez mais explorado para a realização de tais exames. Solicitações deste tipo de exame geram uma reação em cadeia que se alastra descontrolada, transformando testes inúteis em rotina preventiva.  Profissionais desavisados reproduzem requisições de forma acrítica. Consumidores ávidos, por sua vez, comparam a performance dos médicos pela quantidade de exames (desnecessários) solicitados. Aqui eu disponibilizo uma lista de exames que costumam ser solicitados no check up, mas que são absolutamente desnecessários.  Esta lista não esgota todas as possibilidades.

Um sistema de saúde sem regulação é um terreno fértil para o gasto com exames inúteis. Enquanto nos Postos de Saúde os exames disponíveis são muito restritos, no sistema suplementar a disponibilidade é ilimitada, assim como a pressão para solicitá-los.  É urgente quantificar os gastos com exames desnecessários e criar estratégias de regulação para reduzir o desperdício.  Inclusive nos planos de saúde.  Exame desnecessário é sempre de alto custo.  Quando alguém esquece a torneira ligada, a conta do condomínio aumenta para todo mundo. E no condomínio Brasil, quem acaba arcando de forma desproporcional pelo desperdício é o pobre.

As digitais não se limitam à influência do lobby dos exames desnecessários sobre os poderes públicos. Quando a regra é o desperdício, a falta de recursos deixa de ser uma justificativa  plausível para o corte de um programa preventivo.  Afinal de contas, se não houvesse recursos, como explicar a lagosta do Supremo, o Viagra dos militares, o auxílio-creche retroativo dos magistrados, o orçamento secreto dos congressistas e a renúncia fiscal de quem desconta até exames desnecessários do plano de saúde no imposto de renda?  E esta lista também não esgota todas as possibilidades.  Dos recursos públicos destinados à  manutenção de desejos insaciáveis, qual seria o montante suficiente para garantir que toda a população tivesse acesso a direitos básicos?

E não podemos deixar de mencionar a judicialização da saúde, que se apropria de uma fatia considerável do orçamento do SUS.  Concentrar tecnologias de primeiro mundo nas mãos de poucos,  ignorando o parecer dos órgãos da saúde responsáveis pela avaliação de tais tecnologias, obriga o Judiciário a encarar de frente o desdobramentos de suas decisões: os danos irreparáveis causados aos brasileiros que foram privados do direito à saúde. Incluindo todos aqueles diagnosticados com câncer colorretal por não ter acesso ao rastreamento.

Políticas públicas têm um impacto decisivo nas condições de saúde da população. A Medicina Baseada em Evidências (MBE), uma das conquistas mais significativas da medicina contemporânea, tem papel central na formulação, regulação e avaliação de tais políticas.  Mas é preciso levar em conta questões de ordem social, econômica e política na tomada de decisões, a fim de garantir uma distribuição  equitativa dos recursos públicos. Como fazem os ingleses.

Se por um lado a MBE permite recomendar fortemente a prevenção de câncer colorretal a partir dos 50 anos de idade para toda a população, por outro lado impõe limites, apontando exames desnecessários. Por mais que limite seja algo que a nossa alma extrativista se recusa a aceitar, temos que reconhecer que nenhum recurso é inesgotável.  Sistemas de saúde são um bem coletivo, onde o desperdício é socializado. Como os sistemas de saúde brasileiros não são estanques, mas permeáveis, a socialização do desperdício acaba na conta do SUS e o pobre morre sem direito a prevenção de condições evitáveis.

Além disso, a MBE posiciona opiniões e convicções no grau hierárquico mais baixo das evidências. Com isso, grupos de interesse, como a máfia dos exames desnecessários, não passam pelo seu crivo. Incluir na lei a prevenção de câncer desde a puberdade é uma aberração sem qualquer evidência de benefício.  Infelizmente não há nenhum exame capaz de prevenir câncer em crianças e adolescentes.

E não podemos esquecer da utilidade da MBE na priorização de utilização de recursos  escassos.  Como princípio, não é justo que se utilize recurso público (e o recurso coletivo do plano de saúde) para custear procedimentos que não trazem benefício. Nenhum sistema de saúde baseado em evidências custeia ozonoterapia  em detrimento da prevenção do câncer de intestino.

Médicos de Família são uma fonte de recurso para uma população definida:  assumem a responsabilidade pelo manejo racional de recursos escassos, ao mesmo tempo em que consideram as necessidades dos pacientes e da comunidade.  Médicos de Família, por princípio, não podem se omitir na luta pela garantia do direito à prevenção do câncer colorretal para a população dependente do SUS.

Políticas públicas são determinantes sociais de saúde e devem promover a igualdade e equidade, priorizando os mais vulneráveis. A política nacional de prevenção de câncer colorretal não atende à necessidade de todos os brasileiros e é um marcador da desigualdade na distribuição de recursos públicos no Brasil.


Nos  links abaixo considerações de algumas instituições  a respeito da Lei 14.334 de maio de 2022

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