Como transformar a necessidade de repetir prescrições médicas num problema de proporções gigantescas – o caso do Brasil

No Brasil, o uso de medicamentos controlados exige que as pessoas consultem um médico a cada 2 meses para a renovação da receita. A ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, estabelece que este tipo de medicamento pode ser prescrito para o período máximo de 60 dias (1). Acontece que no Brasil, todos os medicamentos com ação no sistema nervoso central são controlados, incluindo drogas de uso frequente como antidepressivos e anticonvulsivantes. Além de ser indicados para quem sofre de depressão e epilepsia, como o nome bem sugere, estes medicamentos também são utilizados para prevenir os tipos mais comuns de dor de cabeça, para tratar dores crônicas na coluna e  joelhos, tratar fibromialgia, dores relacionadas ao diabetes e inúmeras outras condições, que somadas, afligem milhões de pessoas, obrigadas a consultar um médico a cada 2 meses para garantir a continuidade ao tratamento.

Em nosso país, por lei, somente médicos, dentistas e veterinários podem prescrever medicamentos, sendo que no caso de dentistas e veterinários as limitações são evidentes. Enfermeiros que atuam nos postos de saúde do SUS podem prescrever alguns medicamentos, mas a regulamentação é nebulosa e não garante a autonomia destas prescrições, cabendo ao médico da equipe se responsabilizar por elas.

A proporção de médicos no Brasil não é muito diferente de países como o Canadá ou os Estados Unidos, sendo que em 2022 havia 2,6 médicos para cada 1000 pessoas em nosso país (2). O problema é que o Ministério da Saúde considera que 1 médico para cada 4 mil pessoas é suficiente para atender os postos de saúde (3).  Médicos por mil pessoas e médicos por 4 mil pessoas são jeitos diferentes de medir a mesma coisa. Para que a diferença fique clara, basta dividir o médico do postinho em quatro partes e distribuir um quarto para cada 1000 habitantes, e aí temos 0,25 médico por 1000 pessoas. Com isso, a média nacional de médicos é dez vezes maior que a média de médicos que atende a população dependente do SUS.  Alguém pode até me acusar de não ter incluído os médicos especialistas nesta conta, o que aumentaria a proporção de médicos do SUS.  Por outro lado, a maioria dos médicos de postinho é responsável por um número bem maior que 4 mil pessoas, o que diminui a proporção no SUS.  Não deveria ser tão difícil obter estes dados de qualquer maneira.

Com um número reduzido de médicos, o número de pessoas que tomam medicamentos controlados é o contrapeso da balança. Curiosamente, não há pesquisas no nível nacional a esse respeito.  O que não nos impede de arriscar umas projeções com as informações disponíveis. Em primeiro lugar, segundo o Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico, publicado em 2021, os medicamentos que atuam no sistema nervoso geraram o segundo maior faturamento do segmento em 2019.  No entanto ocuparam o primeiro lugar no número de embalagens comercializadas – 807 milhões ou 15,36% do total de medicamentos (4). Em segundo lugar, num estudo realizado na cidade de Campinas em 2011, a proporção de utilização de medicamentos que atuam no sistema nervoso em maiores de 18 anos foi de 16,34% (5). Se extrapolarmos esta proporção para a população brasileira nesta faixa etária, de 146 milhões de pessoas (6), são 24 milhões de tomadores de medicamentos controlados, necessitando de 143 milhões de consultas por ano só para repetir prescrições. Ou 24% das 600 milhões de consultas realizadas no Brasil em 2022 (2).

Como se poucos médicos e muitos pacientes não bastassem, ainda multiplicamos o problema por seis.  Sendo que seis consultas ao ano são suficientes para que alguns autores considerem um paciente como hiperutilizador (7), ou seja, uma pessoa que faz mais consultas anuais que a média dos indivíduos. Um estudo numa população de pessoas do município de Porto Alegre em 2013 encontrou que entre aquelas com diagnóstico de depressão, a proporção de hiperutilizadores é maior, sendo que estas pessoas consultaram em média 5 vezes ao ano.  Os autores concluem que estes pacientes necessitam de abordagens mais resolutivas por parte dos médicos, para reduzir o número excessivo de consultas (8).  O que chama a atenção neste estudo é o fato dos autores não terem suscitado a necessidade de prescrição como causa provável do excesso de consultas. Talvez a questão esteja de tal forma introjetada na mente dos médicos que chegou a um ponto de ser completamente ignorada. Quando promover 16% da população à condição de hiperutilizadores deveria saltar aos olhos como uma política nada saudável.

Talvez isso explique por que os médicos do postinho, que carregam este fardo, nada tenham publicado acerca desta tarefa enfadonha, mesmo quando a conta não fecha. Vamos começar pela demanda: se um médico é responsável por 4 mil pessoas e 16% dos adultos tomam medicamentos controlados, calculamos que umas 450 pessoas precisem das receitas. Multiplicando estas pessoas por 6 consultas ao ano, vamos precisar de 2700 consultas no período.  E agora a oferta: se o médico atendesse 25 consultas por dia, num ano sem feriados, sem faltas por doença, sem participação em congressos ou cursos de atualização, e sem sair da unidade de saúde para fazer visitas domiciliares, chegaria num total de 5500 consultas por ano, já descontado o período de férias.  Resultado: as consultas para repetir prescrição ocupariam metade da agenda de um quarto de profissional para cada 1000 pessoas.

Para enfrentar o problema que eles mesmos criaram ao estipular 6 consultas anuais para repetir prescrição, os gestores do sistema de saúde tiram o corpo fora quando publicam um documento afirmando que a necessidade de receita é uma ‘demanda espontânea do paciente’ num protocolo que ensina a organizar as agendas da Atenção Primária (9).   É utilizada inclusive a cor verde da Classificação de Risco de Manchester, aquelas pulseiras coloridas usadas no Pronto Socorro para decidir quem vai ser atendido primeiro. O verde significa que o paciente que precisa de repetição de prescrição deve ser atendido no mesmo dia. Numa tentativa bizarra de localizar nos médicos do postinho a responsabilidade pela demanda de um sistema que consome a si mesmo.  E de forma insaciável.

Em outros países existem mecanismos que permitem várias dispensações para a mesma receita. A exemplo da ‘Prescripción Médica De Dispensación Renovable’ espanhola, da ‘Refil Prescription’ norte-americana, da ‘Receita Renovável’ em Portugal e da ‘Repeat Prescription’ do Reino Unido, permitindo que antidepressivos possam ser prescritos para períodos de 6 meses a 1 ano. Além do mais, antidepressivos e anticonvulsivantes não são medicamentos controlados nesses países.  O que reforça ainda mais a necessidade de rever a política de medicamentos controlados no Brasil, e para este problema eu recomendo a  pulseira verde de Manchester para que gestores e legisladores tomem uma providência ainda hoje. Certamente antidepressivos e anticonvulsivantes não podem ser dispensados sem prescrição, mas podem ser enquadrados na mesma categoria dos medicamentos para pressão, diabetes, anticoagulantes e tantos outros, que por lei deveriam ser vendidos somente com receita, o que não acontece na prática.  Leia mais sobre mais este problema aqui.

Do ponto de vista da segurança do paciente, é preciso mudar a forma como as drogas são dispensadas. Nossa legislação permite que antidepressivos, anticonvulsivantes e até benzodiazepínicos sejam dispensados em quantidade suficiente para 60 dias de tratamento, mesmo estando entre os medicamentos mais utilizados em tentativas de suicídio (10). Além disso, o sistema atual de dispensação de controlados é arcaico, inviabilizando o cruzamento de dados para rastrear casos de uso abusivo, inclusive para drogas com alto risco de dependência como esteroides anabolizantes e anfetaminas.

E se temos um grande problema, certamente temos a solução.  É tranquilizador saber que já contamos com um sistema eficiente de receitas renováveis em nosso país, chamado Farmácia Popular do Brasil. Este programa permite dispensações múltiplas de medicamentos utilizando o CPF do paciente para o cruzamento de dados. Inexplicavelmente esta tecnologia só é utilizada para condições como diabetes, hipertensão e asma, quando poderia ser de grande utilidade no caso dos medicamentos controlados, ao permitir dispensar quantidade suficiente para 1 mês e fazer cruzamentos que impedem o uso abusivo, com a vantagem adicional de não obrigar as farmácias a armazenar receitas utilizadas para a compra de 807 milhões de caixas de medicamentos pelo período de 5 anos.

Políticas públicas são determinantes sociais de saúde e precisam ser avaliadas e questionadas sistematicamente. O excesso de consultas para repetir prescrição de medicamentos que sequer deveriam ser controlados afeta de maneira desproporcional a população mais vulnerável ao comprometer o acesso a consultas e a continuidade dos tratamentos e ao induzir práticas que ameaçam a segurança dos pacientes.

Como transformar a necessidade de repetir prescrições médicas num problema de proporções gigantescas – o caso do Brasil PDF

How To Transform the Need to Repeat Medical Prescriptions into a Problem of Gigantic Proportions – The Case of Brazil PDF


Referências
  1. Ministério da Saúde. Portaria n° 344, de 12 de maio de 1998. Aprova o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial. Diário Oficial da União; 1998 p. 3 (91 seção 1);Disponível  aqui
  2. Scheffer M. Demografia Médica no Brasil 2023 [Internet]. Associação Médica Brasileira. FMUSP, AMB; 2023 [cited 2023May1]. Disponível  aqui
  3. Ministério da Saúde. Portaria 2979 de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União 13/11/2019; 97(220 seção 1); Disponível  aqui
  4. Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Simões M, Salomão M, Fortes R, de Oliveira EP. [Internet]. Ministério da Saúde Secretaria Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos; Jul 12, 2021. Disponível  aqui
  5. Costa KS, Barros MBA, Francisco PMSB, César CLG, Goldbaum M, Carandina L. Utilização de medicamentos e fatores associados: um estudo de base populacional no Município de Campinas, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública. 2011May9;4(27):649–58. Disponível aqui
  6. IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Pesquisas por Amostra de Domicílios, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012/2022. Disponível aqui
  7. Shukla D, Faber E, Sick B. Defining and characterizing frequent attenders: Systematic Literature Review and recommendations. Journal of Patient-Centered Research and Reviews [Internet]. 2020Jul27 [cited 2023Apr26];7(3):255–64. Disponível  aqui
  8. Carvalho IPA, Carvalho CGX, Lopes JMC. Prevalência de hiperutilizadores de serviços de saúde com histórico positivo para depressão em Atenção Primária à Saúde. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade [Internet]. Sociedades Brasileira de Medicina de família e Comunidade; 2015Mar31 [cited 2023Apr26]; Disponível  aqui
  9. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. [Internet]. Acolhimento à demanda espontânea: queixas mais comuns na atenção básica Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 p. 19–. Disponível  aqui
  10. Bernardes SS, Turini CA, Matsuo T. Perfil das Tentativas de Suicídio por sobredose intencional de medicamentos atendidas por um Centro de controle de Intoxicações do Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública [Internet]. 2010Jul [cited 2023Apr26];26(7):1366–72. Disponível aqui
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