Exames preventivos na medida certa

Nas gambiarras da prevenção. Medicina de Família e Comunidade. Ana Maria Sant'Ana.

Com frequência eu atendo pessoas assintomáticas, que desejam fazer uma avaliação de saúde, ou o popular ‘check up’. Algumas enfatizam, já no início da consulta, que querem fazer o exame completo, com tudo que há de direito. Isso é motivo de muita preocupação, pois estas pessoas foram levadas a crer que a qualidade da avaliação de saúde tem relação com a quantidade de exames realizados. O problema é que relativamente poucos exames têm a habilidade de prever problemas de saúde futuros.

Os exames médicos pertencem de modo geral a duas categorias, dependendo da sua finalidade: exames diagnósticos e exames preventivos.

Os exames diagnósticos servem para investigar a causa de um problema. Depois de ouvir as queixas e examinar o paciente, o médico reúne todas as informações e formula uma hipótese a partir do conhecimento adquirido através do estudo e da experiência prática acumulada.  E é com base nesta suspeita diagnóstica que os exames são solicitados.

Já os exame preventivos ou de rastreamento são solicitados para pessoas assintomáticas. O objetivo neste caso é antecipar a ocorrência de problemas e desta forma impedir ou retardar seu aparecimento. Como neste caso não há uma suspeita diagnóstica, o exame é solicitado com base em fatores de risco, que são a probabilidade de desenvolver determinada doença. Os fatores de risco são definidos de acordo com sexo, idade, hábitos de vida, doenças familiares e outros. O teste do pezinho, que previne doenças em recém nascidos, se baseia em fatores de risco específicos para esta faixa etária.

Contrariando o senso comum, no entanto, não é suficiente que uma pessoa seja assintomática para um exame ser automaticamente considerado  preventivo. Prevenção não é um tiro no escuro e a Medicina Baseada em Evidência estabelece critérios para que um exame seja incluído nesta categoria. Adaptações neste sentido não passam de gambiarras preventivas, não sendo parte da boa prática médica.

Um exemplo para ilustrar esta questão é a cultura de urina. Este exame é utilizado para avaliar a presença de bactérias na urina. Na pessoa com ardência para urinar, a presença de bactérias na urina significa infecção urinária, que é uma doença e necessita de tratamento com antibióticos. Em mulheres assintomáticas, porém, a presença de bactérias na urina, denominada  bacteriuria assintomática, é uma condição comum, afetando até 5% das jovens e até 8,6% das mulheres na pós menopausa.2 Nos homens é uma condição mais rara, mas a frequência também aumenta com a idade.

O uso de antibióticos nestes casos está contraindicado. Em primeiro lugar, o antibiótico não previne a ocorrência futura de infecção urinária e nem de pielonefrite, que é uma infecção renal. Em segundo lugar, o antibiótico não se limita a destruir a bactéria identificada na cultura, mas  atinge outros microorganismos que contribuem para a o equilíbrio do nosso organismo.  Com isso podem ocorrer infecções vaginais por fungos e também quadros de diarreia, que podem ser severos ao ponto de causar a morte. Além disso ainda há o risco da resistência bacteriana. As sociedades de especialidades médicas são unânimes em recomendar  que este exame não seja utilizado como exame preventivo.1,2,3,4

Contudo, há excessões a esta regra, como é o caso da gestação. Isto porque nas mulheres grávidas há indicativos de que as bactérias na urina aumentam o risco de complicações tanto para a mãe (pielonefrite) como para o feto (baixo peso ao nascer e parto prematuro).  Por esta razão a cultura de urina está indicada preventivamente para todas as gestantes.1,2,3,4

Assim como a cultura de urina, há uma série de exames que não são indicados para prevenção. Estes incluem exames laboratoriais como dosagens hormonais e de vitaminas e minerais; e exames de imagem como ultrassonografia mamária e ultrassonografia de tireóide . Vamos abordar alguns destes exames em postagens futuras.


Algumas Referências a respeito da bacteriúria assintomática

1. FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) 2021 – artigo em português com recomendações sobre bacteriuria assintomática em mulheres na página 7. Disponível aqui.

2. Recomendação conjunta das Sociedades Brasileiras de Infectologia, Urologia, Ginecologia Obstetrícia e Medicina Laboratorial 2020 – artigo em inglês, trata da bacteriuria assintomática na página 112. Disponível aqui.

3. IDSA – Sociedade de Doenças Infecciosas da América – 2019. Este artigo trata especificamente de bacteriuria assintomática em várias situações clínicas. Disponível aqui.

4. USPSTF – Força Tarefa de Serviços Preventivos dos EUA – 2019. Recomendação sobre bacteriuria assintomática. Disponível aqui.

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